sábado, 29 de setembro de 2012

Contos contados de Minas (49)

Adão

Este um nada tem a ver com o da Bíblia, que deixou descendência de parceira, retirada da própria costela (de onde mais?), já reencarnando bem e mal, a nos marcar de antagônicos sentimentos terrenos. No caso, o Adão era inofensivo, alma simples, herdeira de absoluto silêncio. Criança de inocências primevas, de alma já prometida às benesses celestiais.
Pode até existir mudo que não seja surdo, ou surdo que não seja mudo, mas nenhum desses era o caso do Adão de minhas lembranças, surdo-mudo, de nascença. Primo de minha avó, um tantinho só mais novo que minha tia, quando estes deixaram a zona rural pela cidade. Alugaram casa alta, arejada e antiga da, então, Rua Paracatu, larga de passar boiadas e bois brabos, de arribadas. Mais tarde, veio a ser avenida, com direito a canteiros e jardins, com árvores ao meio, bancos públicos para se jogar conversas fora, sem compromissos.

A casa de estilo colonial chegou, até, a ser destacada como patrimônio artístico da cidade. Duas janelas de madeira, um afastado, com janela sobre área interna, para deixar lugar à escada que dava entrada à sala, compondo a fachada, que estampava ares e tons de passado distante. Como frente, o lote ainda reservava portão de entrada para um corredor comprido, por onde se chegava aos fundos, certamente, usado para se passar a cavalo, lá pelos anos 1920. Do lado oposto ao corredor, um muro cercava os canteiros de hortaliças de minha tia, já depois de ali passarem a morar. As couves faziam vista às pessoas que procuravam se afastar dos agrotóxicos e comer algo que tivesse o gosto de saudade.
Além da sala, o quarto de visitas, o quarto do casal que dava para o salão, de onde se ia à cozinha e despensa. Contígua ao quarto principal, a extensão que os costumes coloniais reservavam às crianças pequenas, e às filhas solteiras, eternas infantes. Dali, os velhos poderiam ser observados, no sono e nas doenças.
O restante do terreno, nos fundos, era ocupado por uma casinha de despejos, pelo galinheiro, mais uns canteiros, para o plantio do alho, de grande importância na culinária caseira, pela cisterna e, bem ao canto do lote, distante do poço, pela “casinha” rústica, onde os moradores satisfaziam as necessidades fisiológicas.
Tudo isso, para dizer que os novos moradores, recém-chegados do campo, moravam bem em frente à casa da tia Rufina, do tio Osório e do Adão, que, por força da deficiência física, estava impedido de constituir família e deixar descendência. Perambulava pela vizinhança, que o conhecia, sobejamente, aceito nos seus hábitos infantis, inofensivos e discretos.
Ele tinha o costume de abrir a porta da sala das casas vizinhas, deixar as pessoas como as encontrava, tivessem ou não de conversas com as visitas, que ele não podia ouvir, e ir entrando direto à cozinha. Ali, o primeiro gesto que fazia era colocar o dorso dos dedos da mão na cafeteira de folha-de-flandres, sentir se o conteúdo estava quente, morno ou frio. Se quente, indicando que fora coado havia pouco, procurava a xícara, olhava se estava limpa, e servia-se. Para melhor saboreá-lo, se postava na porta da cozinha que dava para o quintal de muitos verdes, mirava o céu ao longe, cujas nuvens descortinava traços de azul profundo, e o bebia, vagarosamente. Terminado aquele ato corriqueiro, lavava a xícara, colocava-a sobre a bandeja, que ficava coberta por um forro de pano bordado, com a cafeteira e xícaras. Ele tinha curtas as vistas, e enxergava quase que só de um olho. Sentia cheiro, sabor, e, com o tato, se certificava do calor das coisas.
Isto feito, voltava ao ponto onde entrara, passava por entre as pessoas da casa e saía, como se nada houvera, como se a vida se resumisse a um entrar e sair, sem avisos e proibidos.
Assim, era a vida do Adão, que só carregava em si, além da roupa do corpo, a inocência, que Deus lhe dera de presente, conhecida de todos, que nem mais estranhavam ou comentavam suas atitudes. A mudez e a surdez ainda eram acrescidas da deficiência que trazia no olho. Uma pálpebra caída o fazia entortar a cabeça para verificar, na claridade, algum objeto que despertasse sua atenção, o qual era devolvido ao lugar de onde saíra. Das casas não carregava um palito de fósforo fosse. Só o sabor da liberdade lhe bastava. Uns biscoitos, que o apetecessem, comia-os com o café. Umas laranjas mais graúdas e lisas, descascava-as e chupava, sem que isso lhe despertasse mínima culpabilidade. Ademais, ninguém se preocupava com seu proceder. Nem por isso, a tia Rufina, deixava de ficar atenta a seus passos, e dele dava notícias às pessoas que não o conhecessem ou pudessem fazer-lhe mal, ou julgá-lo malfeitor.
Somente um caso curioso dele se guarda. O susto que pregou em uma mãe que o encontrou deitado à beira da cama do filho recém-nascido. Ela não o vira entrar e pensou tratar-se de um desconhecido, como, depois, contou. O que passara pela cabeça do Adão, em querer deitar-se ao lado de uma criança inocente? A mesma inocência os teria aproximado, sabe-se lá Deus como?.
Adão tinha alta estatura e magreza de quem passava o dia vagando. A família o fazia vestir roupas simples, porém limpas. O aparecimento dos automóveis, que vieram substituir o tropel das boiadas, cada dia mais numerosos, preocupava a mãe e outros da família. Temia-se que fosse atropelado em suas silenciosas e incontáveis travessias de ruas.
           Entretanto,os bêbados, as crianças e os inocentes, Deus ampara particularmente... O tempo acabou por levá-lo do convívio das pessoas, e a fazer esquecer aquela maneira peculiar de reconhecer o calor das coisas, pelo sentido que nele devia ser mais aguçado do que aos demais viventes.

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