domingo, 27 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (25)

            Coisas fáceis e difíceis 

Meu pai nunca disse para ninguém gostar das coisas difíceis, mas como sempre citava um de seus irmãos que gostava das coisas fáceis, parecia sugerir que gostava mesmo era das difíceis, em detrimento das fáceis. Qual a graça, a não ser um grande ensinamento relacionado ao afrouxamento dos ânimos, que se evidencia cada vez mais na atual sociedade de consumo, na qual se vê imperarem as muitas vontades, em prejuízo da cada vez mais pouca força de vontade.
Dizem que o império romano começou a se decompor devido às facilidades que cada vez mais tomava conta dos ânimos de seus cidadãos. O corpo humano gosta de sombra e água fresca. O trabalho duro, que não precisa ser apenas braçal, requer sair-se ao sol e suar a camisa. Ninguém pode negar que se valoriza mais o que se ganha com o próprio esforço, em detrimento do que outros ganharam, para deixaram como herança aos filhos. Os “filhinhos de papai” sempre foram mais perdulários do que os filhinhos de carentes, ou de quem não adotou a idéia de facilitar em demasia a vida deles.
No volume primeiro do ensaio que Alain Peyrefitte dedicou à China (“Quando a China despertar o mundo tremerá” (1973), o autor confirma a veracidade desse inconveniente da vida fácil: “À medida que o conforto aumenta, o nível de resistência à dor abaixa. Os aparelhos de ar condicionado levam à vulnerabilidade ao calor e os aquecedores domésticos ao frio e o progresso material à hipersensibilidade.(...) Pouco a pouco, se enfraquecem os mecanismos de autodefesa, que uma vida austera oferecia para proteger da doença e do sofrimento.”(p. 200-1) A sociedade chinesa, por enquanto, exemplifica esta teoria de que a vida fácil traz prejuízos sobre todos os pontos de vista. Os camponeses, sustentáculos das revoluções chinesas, assim como  em todas as partes do mundo, sempre foram mais rígidos nos costumes e menos gastadores do dinheiro que sofrem para ganhar. Os citadinos encontram o alimento nas prateleiras dos supermercados, enquanto aqueles o retiram, muitas vezes, da própria terra, que suam ao lavorar.
Assim, meu pai, instintivamente, procurava impor aos filhos sua prática de rigor, em comparação a pessoas da própria família que escolhiam os caminhos mais curtos para se chegar ao mesmo ponto. Bobo de quem assim procede, pensam os adeptos do conforto e do pragmatismo, teoria que ele, por ser quase analfabeto, nunca poderia tirar dos livros, mas de seu instinto e sobrevivência em contato com a natureza.
Lembro-me de que, numa certa ocasião, estando eu já cursando a universidade e ciente de que a vida difícil deveria ser colocada em segundo plano, pude fazer-lhe ver que sua maneira de pensar não mais se adequava  aos novos tempos. Estava ele fazendo uma cerca quando vim em visita à família nas terras onde morava. Fui encontrá-lo em pleno esforço de levar um tronco de árvore, previamente preparado para esticador de arame, para conter-lhe a força nos contornos da divisória. Um buraco também já tinha sido preparado de antemão para receber a madeira. Esticador e buraco se encontravam a uma boa distância um do outro, e meu pai usava uma pesada alavanca de ferro fundido, para, aos poucos, aproximá-los, com o revezamento de forças distribuídas nas extremidades do volumoso tronco.
Eu estava ali vendo aquele esforço sem poder ajudá-lo, ao mesmo tempo em que procurava uma idéia de como minorar-lhe o trabalho. A ocasião surgiu como se eu a tivesse feito chegar propositalmente. Naquele exato momento, passava ali ao lado o meeiro da fazenda, com quatro bois carreiros devidamente equipados com cangas, cambões e reforçada corrente, dessas de ferro que acompanham a tralha de um tradicional carro de bois. Ele estava a caminho de buscar algum galho de árvore seco nos pastos que servisse para fazer uma lenha para o fogão da mulher. Parei bois e carreiro, e disse a meu pai que aproveitasse a oportunidade para puxar o pesado esticador até o buraco. Bois carreiros deveriam servir, também, em tais empreendimentos. Meu pai, entretanto, recusou a ajuda dos animais e do empregado, ali disponíveis, e recomeçou sua estóica peleja. Fiquei pensando, à época, sobre o porquê de tão pouca racionalidade.
Por outro lado, minha mãe, também, parecia compartilhar-lhe a vida dura. Não tinha nenhuma precisão de extrapolar as atividades domésticas,  com uma penca de filhos a cuidar. Ainda, assim, encontrava tempo para ajudá-lo nas atividades externas e no trabalho pesado, mais reservado aos homens. Dizia sentir dó do marido. Este, mal acostumado com tais ofertas, desde os primeiros tempos de casados, passou a esperá-la para determinados trabalhos próximos à casa. A lida do gado, no curral, que começava já de madrugada, sem domingos, férias e feriados, era a mais desgastante. Acontecia, mesmo, de algumas vacas só aceitarem minha mãe para ordenhá-las. Por que não contratar alguém para ajudá-la, pensava eu. A explicação só podia vir daquela mania de querer provar para si própria que teria de dar conta de todos os serviços, custasse o que custasse. O contrário traduziria moleza, e ela, também, não aceitava vida de facilidades.
Diante de tais quadros, que qualquer vivente dos tempos modernos classificaria como irracionais, só se pode pensar que trabalho duro nunca diminuiu tempo de vida de ninguém, nem saúde e disposição para exercê-lo. O oposto se comprova com muita evidência. Dessas lembranças vem-me um texto curto, como alívio de consciência, e reconhecimento aos meus pais pelo que fizeram para facilitar-me a existência, com o exemplo da vida difícil:

Meu pai cumpriu seu tanto
de tamanho esforço.
Minha mãe, seu quinhão
de santo lenho.
Eu, de pouca coragem
e não mais empenho,
costumo parar para divagar
no meio do caminho,
sem ânimo, sem bússola,
as idéias em desalinho.
Nem tenho quase nenhum
apto engenho.

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