segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Contos contados de Brasília (1)

A lagarta e o Sansão 

Não por acaso, ganhou uma muda de Sansão do Campo. Veio de grupo de alunos que preparava um seminário sobre ecologia e resolveu presentear aos colegas e professor com uma muda de árvore, conseguida em viveiro da universidade. Chegou, pois, sozinha, o que não é muito comum, a não ser pelas circunstâncias da ocasião. Comumente, mudas dessa espécie não andam desacompanhadas, uma vez que trabalham quase sempre em uníssono coral, por sinal, bem numeroso. Digo trabalham porque se pensa no Sansão do Campo para cercar propriedades a possíveis fugitivos ou intrusos. Nesses casos, as plantas se enfileiram, crescem tão próximos umas das outras que mal deixam passar o vento por entre troncos e galhos. E os espinhos, de pontas aduncas, que parecem inofensivos e bonitos de certa distância.
No início, não sabia que aquela plantinha, verdinha, tenra e débil, merecedora de todos os cuidados no transportar, trazia em seu currículo genético tão fortes pendores. Desalojou-a de mirrado vaso, sem quase nenhuma terra e nutrientes, e transplantou-a para um recipiente maior, com boa terra e água abundante. Sem falar que lhe reservou um canto privilegiado da jardineira do apartamento. Nestas circunstâncias, restava ao novo morador crescer e fortalecer seus galhos e espinhos curtos e desafiadores.
Dias depois, o Sansão mostrava as verdadeiras qualidades genéticas e a que viera. Na primeira e merecida toalete, para ajeitar-lhe as folhas, o danado já revelou seu caráter ferino, aplicando no benfeitor um arranhão, de deixar lembranças pela falta de bons modos. Foi que este pôde comprovar sua real identidade. Ficou imaginando o desastre, se, no lugar de um , ali se perfilassem uma meia dúzia de valentes exemplares da sua espécie!
Quando viajou de férias, deixou avisados os de casa, que não esquecessem de dar água às plantas das jardineiras, entre as quais contavam algumas mudas de pau-brasil e ipês brancos. Os paus-brasil não eram desprovidos de espinhos, mas, estes, ele sabia que, somente mais tarde, iriam merecer cuidados especiais, quando já transplantados na natureza. Os ipês, coitados, eram inofensivos por natureza, e, desde sempre e para sempre, de flores efêmeras.
Um mês depois, ao voltar de férias, ficou boquiaberto com o tamanho do Sansão. As outras plantas cresciam lentas, certamente cuidando mais de seus troncos, do que de sua aparência e tamanho. Os espinhos do valentão estavam, agora, bem à mostra, como que dizendo: “cuidado, que, por aqui, passa vento e, assim mesmo, com bastante coragem e precaução.”
Vai , um dia, ele notou que um galhinho seco, um graveto, ajuntava-se a outro galho do tronco, a exemplo da hipotenusa aos dois catetos do triângulo retângulo. Aquilo lhe chamou a atenção pelo lado inusitado da ocorrência. Galhos de árvores raramente se ligam daquele modo. Observou melhor, e chegou, até, a apalpar-lhe a textura. Era macio, de coloração ocre-amarelada, contrastando com o verde vivo da planta. Demorou a compreender o mistério: era uma lagarta, o tal apêndice. Ela usava seu mimetismo para não se deixar levar a nenhum, ou ao primeiro olhar de malfeitor. O curioso é que ele não lhe faria mal algum, até porque tencionava mostrar aquela graça da natureza às outras pessoas da família.
Quando surgiu a tal ocasião, levou-as para diante do fenômeno, mas a lagarta não estava mais . Pensou que um predador desconhecido, mais bem informado, resolvera chegar primeiro ao pequeno animal. Mesmo assim, descobriu, com mais facilidade do que da primeira vez, onde estava o tal bichinho estranho. Tinha se mudado de lugar e de modo de camuflagem, abraçando-se ao lado oculto do tronco. Tocou-lhe novamente com os dedos, sem que sentisse de sua parte a mais mínima reação. Parecia morto de tão murcho. Certificou-se, então, que se tratava de mais uma estratégia de salvamento e o deixou, para ver se inventaria outras mais. A cada dia ele ia observando as suas artimanhas de sobrevivência. O mais intrigante em tudo aquilo era que não havia mais indivíduos, contrariamente ao que costuma acontecer com a família das lagartas, vorazes e numerosas.
Enquanto isso, o espécime crescia, crescia e mostrava nas garras o vigor de persuasão. Não se sabe que instinto destrutivo se apossou dele, o dono, que resolveu aplicar um jato de sulfa na incipiente árvore, para protegê-la de mais alguns outros parasitas, como algumas cochonilhas, por exemplo, que já o tinham elegido, como fonte de alimentação para si e a, também, prolífera família. Neste afã de proteção, a lagarta solitária não deixou de receber, impensadamente, uma boa doze de veneno. Horas depois ele a viu dependurada por um fio de seda, ao sabor do vento. Ficou entristecido com aquele gesto cruel, de ataque a um mero individuo indefeso que revelava tão aperfeiçoados dotes de sobrevivência.
Felizmente, para alegria sua, em visitas diárias, sem perturbar-lhe o sossego, ele a assistiu soerguer e procurar novamente seu habitat no aconchego do Sansão. Tinha curiosidade em ver até onde iria aquela engenhosidade. Mas a pobre lagarta não crescia, parecia não comer, como é próprio de outras da mesma espécie, animais devoradores por natureza.
E, assim, em um triste dia, ele não mais a viu. Procurou-a de todo o jeito, mesmo que somente para dar-se conta de que as técnicas de mimetismo do inseto não lhe passariam mais despercebidas. Não o encontrou, nem como galhinho seco, nem sob a forma de casulo, como seria o normal da conseqüente metamorfose. Não podia pensar em algum pássaro predador que o tivesse colhido em vida, na jardineira da janela de um apartamento.
Caso tenha conseguido sobreviver àqueles duros desassossegos, mudando-se de forma, para se livrar de curiosos ou de predadores, resta lhe tirar o chapéu, para tantas astúcias que só a natureza sabe tecer. Quanto ao Sansão, este vai ter que se mudar de lugar, custe o que custar, queira ou não, porque com a vitalidade e os espinhos de que é dotado, não vai se deixar domar pelo resto dos tempos. Nem Dalila lograr-lhe-á cortar a crista do orgulho.

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