sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (24)

Professora primária

Do ônibus desceu uma mulher fragilizada, equilibrando sobre pernas endurecidas o peso da idade e o cansaço de um passado esquecido. Apoiava-se nos braços do marido ainda válido, que a acompanhava em suas tentativas de solução, pelas graças de Deus e por lugares sagrados, de males que o tempo costuma carregar. vinha ela cambaleante à procura de satisfazer necessidades prementes e naturais. Mais atrás e mais espertos, o restante dos passageiros e, por último, uniformizado e de crachá bem à mostra, o motorista, responsável pelo transporte do grupo peregrino. O lugar não era ponto de almoço, e teria sido melhor procurar, para tanto, outro paradeiro mais adequado. Mas aquela casualidade teria que ser frutífera, pelo encontro que estava na iminência de acontecer.
Por ali, também perdidos pelas estradas, atentos ao tempo e às  intempéries, ele e acompanhantes de viagem se encontravam no ato de um frugal lanche de estica-pernas. A coincidência era grande. Não porque ele a conhecesse dos bancos de escola, por muito pouco não fora também seu ex-aluno, mas por afinidades de que o reconhecimento o fazia devedor. Ela fora professora de suas irmãs, de mais parentes, aos quais as circunstâncias não favoreciam a procura do saber em lugares urbanos, como viria acontecer consigo próprio. Por isso, mesmo, teve, ali, a oportunidade de cruzar-lhe o caminho, e dizer-lhe o que havia muito gostaria de ter dito, que um ato de reconhecimento por serviços prestados urgia de ser externado por quantos dela houvessem recebido os imorredouros benefícios da educação.
Ela era professora primária, sempre fora, e se orgulhava de ter sido. Professora de roça, quase. Morara, para exercer seu magistério, em um lugarejo que, além da igreja, do coreto, da casa paroquial, da casa de escola, da “casa da professora”, da venda e de mais uns ralos casebres espalhados ao deus-dará, pouca coisa mais atraía a atenção dos moradores circunvizinhos. Havia, é claro, as datas das festividades religiosas, ocasião em que o padre aparecia para celebrar os ofícios divinos e cuidar das almas esquecidas. No mais, o movimento do arraial era o chega-e-sai dos meninos e meninas que ali vinham em busca dos ensinamentos da distinta professora.
Além de seus misteres de mestra das primeiras letras e números, ela ajudava o pároco no preparo dos fiéis para os dias de visita, e das festas santificadas, no catecismo dos domingos, nos arranjos da igreja, nas leituras dos evangelhos e na preparação dos sacramentos. Raras as pessoas em condições para os serviços litúrgicos. Quando muito, carregavam o pálio, sob o qual caminhava o padre, portando o santíssimo nas procissões dos devotos.
A igreja ou “capela”, como era mais conhecida pelos moradores do lugar, era o monumento de maior projeção, e garantia lugar central de “patrimônio” da Igreja Católica, doação do proprietário das terras que circundavam o arraial. Expressava, como geralmente acontecia, um reconhecimento da devoção a determinado santo, ou mesmo, um pagamento de promessa por graça recebida. Um sonho, um parto difícil, um filho salvo de doença grave, um milagre acontecido levavam a se erigir um templo, por mais simples fosse, ao santo da devoção. No caso, o padroeiro veio a ser Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. O padre, entretanto, que sabia ser São Sebastião o santo protetor dos animais e, por isso mesmo, mais propenso a ganhar donativos análogos no dia de sua festa, achou mais conveniente, para a Santa Madre Igreja, trocar o patrono do lugar. Que Nossa Senhora do Perpétuo Socorro continuasse a desfrutar da preferência dos mais antigos moradores, que reivindicavam a sua volta ao lugar de honra dos altares!
 Dona M. Guimarães, como era por todos conhecida, pois respeito se impunha, chegara naqueles lugares pelos idos de 1949, e, por anos e anos, pelo tempo de seus dias úteis, orientou, solícita, os filhos daqueles moradores quase analfabetos, nas primeiras letras e números. Apesar de ainda estar em vigor a prática da palmatória, tem-se pouca notícia, ali, de sua adoção como instrumento persuasivo.
A escolaridade das crianças previa três anos de duração. Em único recinto, reunia-se a totalidade dos alunos, cada um com o livro de leitura correspondente ao nível de aprendizado. Á medida que eles iam passando para o nível mais adiantado, repassavam o manual ao irmão ou ao parente mais novo. O grau de escolaridade final correspondia ao livro que chegasse a terminar. Cada volume, um ano escolar. Alguns alunos paravam no primeiro, outros no segundo e alguns terminavam o terceiro conclusivo. “Meu filho, estudou até o final do segundo livro de leitura”, já se orgulhavam os pais. Entretanto, poucos eram aqueles que davam seqüência aos estudos, em outro lugar mais adiantado.
 Todo esse mundo, lhe veio à cabeça naqueles poucos instantes de pausa para almoço, que nem chegou a acontecer. As pernas endurecidas tiveram que subir e descer escadas, com a pouco ajuda daquele que nem mesmo chegara a tê-la como mestra. O ônibus retomou a estrada e levou na fumaça um olhar de gratidão na pessoa de um de seus passageiros.
Resta a dívida. Apesar de lembrada com carinho por quantos tivera nos bancos daquela casa de escola, Dona M. Guimarães ainda não mereceu o reconhecimento devido, por parte das autoridades constituídas do município. Seu nome ainda sequer foi gravado em placa de rua ou frontispício de instituição de ensino. Os descendentes dos que dela receberam tantos favores, além dos primeiros passos por entre letras e números, poderão, assim, rememorar seus feitos e fortuna. Quousque tandem?

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