Água limpa e de água suja .
Valesse Nossa Senhora da Abadia da Água-Suja! As férias mal chegavam e já tinham destino certo : ir para a roça , ajudar o pai na lida da terra . Daquela feita , o destino seria bater a “cultivação”, o roçado onde o capim ainda disputava espaço com o viço dos ramos, assa-peixes, leiteiros e o teimoso mato. Ficavam, lá, os dois , pai e filho, ainda miúdo , de calças curtas e botinas, sola de couro liso, sem meia , responsáveis pelos calos d´água nos nós dos dedos dos pés e calcanhares.
Corta aqui , corta lá , sempre atentos a brotos da erva tóxica, matadeira de gado. Quando vinha a sede, o jeito era matá-la com uns bons goles, sorvido sofregamente, derramando pela güela a baixo, escorregando pelo canto da boca, para justificar o enxugue no dorso da mão ou na manga da camisa, antes de repor a caneca na boca da cabaça. E recomeçar, é claro, o corta-corta-sem-fim, de acordo com o limitado pensar e a pouca idade do filho .
O sol a pino , o suor salgado , a escorrer sob o chapéu de palha para dentro dos olhos , os mosquitinhos “lambe-lamber” arreliando, a garganta secando. “Vai buscar a cabaça d´água .” Esta ficava escondida ali por perto , nas sombras dos ramos mais espessos , em meio a moitas de capim-gordura, que não a deixava perder o frescor . A caneca esmaltada, um tanto já escalavrada de tombos levar , tapava-lhe a boca arredondada e lisa , “pra mode” evitar os ciscos e a curiosidade das formigas . Mas , cadê água ! Cabaça vazia , sede chegada , apertada ! “Vai no Santo Antônio, buscar água . Pega a cabaça !”
O rio distava e a descida era esconsa . Antes de chegar à beira d´água , havia a cava , por onde se descia até a corrente, e por onde se via a caudal . Por ali devia também descer a onça, na hora de querer beber água . O menino era só medo , mas não podia falhar , e tinha que voltar depressa com a cabaça cheia , que o pai estava com muita sede. Do alto da cava , olhou a água lá embaixo , para primeiro conferir. Que alívio , a água estava suja . Sorriu, meio aliviado. Água suja ninguém bebe, somente animais, boi , bicho do mato que já têm costume . Deu meia-volta e subiu o morro de volta , quase que correndo, as pernas leves, para dizer ao pai que a água estava suja.
A reprimenda não se fez esperar . “Volta lá e traz a água, depressa! Um pulo lá, outro cá !” Desceu, novamente, correndo, sem nem mesmo pensar na onça, e na preciosa cabaça que bem podia escorregar da mão e... partir em cacos e cuias. Chegou à cava , sentiu na espinha o frio que subia da água, o fôlego curto e o coração solavancando, aos pulos . Acocorou-se primeiro , depois ajoelhou-se à beira da água rumorejante do recôndito Santo Antônio, para melhor alcançar a caneca, com a qual encheria a vasilha. Retirou-a para confirmar a sua já formada e primeira impressão . Não era ver que a água estava limpa !
E aprendeu, a duras penas, a lição:
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