sábado, 5 de novembro de 2011

Contos contados de Minas (21)

            Água limpa e de água suja.

Valesse Nossa Senhora da Abadia da Água-Suja! As férias mal chegavam e tinham destino certo: ir para a roça, ajudar o pai na lida da terra. Daquela feita, o destino seria bater a “cultivação”, o roçado onde o capim ainda disputava espaço com o viço dos ramos, assa-peixes, leiteiros e o teimoso mato. Ficavam, lá, os dois, pai e filho, ainda miúdo, de calças curtas e botinas, sola de couro liso, sem meia, responsáveis pelos calos d´água nos nós dos dedos dos pés e calcanhares.
Corta aqui, corta , sempre atentos a brotos da erva tóxica, matadeira de gado. Quando vinha a sede, o jeito era matá-la com uns bons goles, sorvido sofregamente, derramando pela güela a baixo, escorregando pelo canto da boca, para justificar o enxugue no dorso da mão ou na manga da camisa, antes de repor a caneca na boca da cabaça. E recomeçar, é claro, o corta-corta-sem-fim, de acordo com o limitado pensar e a pouca idade do filho.
O sol a pino, o suor salgado, a escorrer sob o chapéu de palha para dentro dos olhos, os mosquitinhos “lambe-lamber” arreliando, a garganta secando. “Vai buscar a cabaçaágua.” Esta ficava escondida ali por perto, nas sombras dos ramos mais espessos, em meio a moitas de capim-gordura, que não a deixava perder o frescor. A caneca esmaltada, um tanto escalavrada de tombos levar, tapava-lhe a boca arredondada e lisa, “pra mode” evitar os ciscos e a curiosidade das formigas. Mas, cadê água! Cabaça vazia, sede chegada, apertada! “Vai no Santo Antônio, buscar água. Pega a cabaça!”
Não era preciso falar duas vezes, nem dizer para tomar cuidado com a vasilha, que se a deixasse cair e quebrar... nem pensar podia!  As pernas tremendo, dada a distância do rio, ia descendo, pensando na onça que bem podia sair do mato, ou querer também beber água, justo àquela hora, na mesma aguada. Ou medo de outros bichos, mais povoadores da mente infantil do que do próprio mato nativo. ia descendo, segurando a cabaça com cuidado, olhando onde pisava, conforme sempre costumava recomendar a mãe, para não tropeçar. Os sentidos na onça, o olhar atento, a imaginação a mil.
O rio distava e a descida era esconsa. Antes de chegar à beiraágua, havia a cava, por onde se descia até a corrente, e por onde se via a caudal. Por ali devia também descer a onça, na hora de querer beber água. O menino era medo, mas não podia falhar, e tinha que voltar depressa com a cabaça cheia, que o pai estava com muita sede. Do alto da cava, olhou a água embaixo, para primeiro conferir. Que alívio, a água estava suja. Sorriu, meio aliviado. Água suja ninguém bebe, somente animais, boi, bicho do mato que têm costume. Deu meia-volta e subiu o morro de volta, quase que correndo, as pernas leves, para dizer ao pai que a água estava suja.
A reprimenda não se fez esperar. “Volta e traz a água, depressa! Um pulo lá, outro !” Desceu, novamente, correndo, sem nem mesmo pensar na onça, e na preciosa cabaça que bem podia escorregar da mão e... partir em cacos e cuias. Chegou à cava, sentiu na espinha o frio que subia da água, o fôlego curto e o coração solavancando, aos pulos. Acocorou-se primeiro, depois ajoelhou-se à beira da água rumorejante do recôndito Santo Antônio, para melhor alcançar a caneca, com a qual encheria a vasilha. Retirou-a para confirmar a sua formada e primeira impressão. Não era ver que a água estava limpa!
          E aprendeu, a duras penas, a lição: água muita, água suja, água pouca, água limpa. Uma questão de quantidade e de fundo de copo, sem carecer de muita explicação. O encardido da vida, ora se suja, ora se limpa, dependendo do estado de espírito, ou do grau na precisão.

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