A Mulinha Amarelinha
Da lida com o gado , a Amarelinha entendia como nenhum outro muar ou cavalo da fazenda. Boa de rédea, só faltava adivinhar os comandos do ocupante da sela, que nem precisava puxar-lhe com mais força o freio, como costumava acontecer a outros “queixos-duros” de sua raça. Além desses serviços domésticos, de beira de porta, com gado manso e costumeiro, ela, ainda, fora, algumas vezes , segundo relatos fidedignos de peão-capataz da nossa mais alta consideração, acompanhando inúmeras boiadas que atravessaram o Rio Grande, para adentrar, em longas léguas, território paulista. Isso, com mais de mês de marcha cerrada, nem sempre de dorso ao vento, liberada das selas e das esporas pontiagudas de peões, quase sempre desacostumados aos bons-modos, nos tratos domésticos. Dia, sim, dia, não, carregava um peão diferente nas costas, para o resfôlego de outros animais da tropa boiadeira. Na Planura, a nado , as águas bastantes e pesadas, só lhe assistiram o focinho de fora, as narinas a disputarem o ar precioso com as centenas de bois cansados.
Deixou histórias de contentamentos e desagrados. Raivas passageiras de menino, que, freqüentemente, tinha que trazer os “animais” ao curral, custasse o que custasse, e, ela , velhaca e maliciosa, tudo fazendo para desencaminhar os companheiros, além de lhes ensinar um bom bocado de artimanhas e safadezas, para não seguirem pelo trilho certo. Nem lágrimas a comoviam, já que no voltar à casa sem a tropa, ralhados do pai não se fariam esperar. A mulinha só mudava de idéia, depois que um dos animais, menos experiente, farejava o que menino sofria, e tomava o rumo da casa. Gregária e bem irmanada ao grupo, ela não iria ficar, por ali, sozinha, no morro daquele pé de serra, trocando de lado, a olhar o resto da tropa seguindo na direção desejada. As pedras da Serra Feia podem bem testemunhar aqueles tristes corre-corres e xingamentos, que, quase sempre, precediam um “buscar de animá”, quando se tinha no comando uma tão safada criatura.
Raiva, de verdade, ela fez ao meu avô, que nela foi a passeio, lá pelos lados dos Caixetas. Embora de confiança e mansa de montaria, a Amarelinha exigia cuidados em não se deixar porteiras com tramelas facilitadas, nem colchetes bambos, que ela os abria nos dentes, e deixava o cavaleiro a pé, sem saber do seu paradeiro. Quando , de volta, em animal emprestado, o meu avô chegou à casa de meus pais , lá encontrou a mulinha, de velha madrugada, o olhar dissimulado e malicioso, em meio à tropa, a mastigar seu capim costumeiro, o rabo de abanar mosquitos, traduzindo despreocupação.
Já, de índole boa, com a perda das cócegas e ímpetos da juventude, ela, até, se deixava pegar no pasto, e nela montar em pelo , servindo-se de seu joelho como degrau, coisa rara para um muar, quase sempre de temperamento instável . Mansa, boa de sela , sabia chegar do lado certo nas porteiras , não refugava com pouco espalhafato, não dava coice na hora de acomodar-lhe a sela, conhecia os donos , e se prestava para o que desse e viesse, na lida do diário.
De certa feita, para mais detalhamento de rodeios, eu-menino, de pouca idade e experiência, que acompanhava meu pai em suas idas e vindas pelos caminhos dos longes da Boa Vista, Serra Feia e Fulminante, fui levado a pegar, sozinho, o rumo de volta à casa . Por desconhecer aquelas estradas e bifurcações de caminhos , meu pai achou por bem me instruir: “bambeia as rédeas e deixa que a mula conhece os caminhos”. E, assim , de desvãos e desvios acabei chegando, sem nenhuma hesitação da mulinha, que me carregava bem macia. Nenhuma treta e tropeços, já que o voltar sempre foi mais facilitado, para qualquer animal de terreiro.
Mas, os tempos se passaram, e a Amarelinha como que se encantou, para viver só na imaginação, e deixar seus espaços de boas lembranças aos que dela se serviram. Como quis meu pai, nas condições de venda, nunca mais se viu, por aquelas terras, cordas a tolherem-lhe suas fortes vontades, embora se soubesse que suas energias em breve passariam a outros semoventes, nem, pelo tanto, conhecidos e estimados.
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