terça-feira, 26 de julho de 2011

Contos Contados de Minas (3)

A Mulinha Amarelinha

Quando foi vendida para o matadouro, a mulinha Amarelinha levou saudades. O dono não agüentaria assisti-la titubeante sobre as já envelhecidas pernas de forte animal de serviço que sempre fora. Mas ao comprador impôs condição: a de que não fosse vista por aquelas bandas com cabresto na cabeça. E, assim, dali por adiante, sua existência se limitou à realidade das lembranças.
  perto do final de sua permanência em nosso meio, meu pai costumava dizer que uma pessoa tinha autoridade para ralhar com ela: ele próprio, pela maior idade do que todos os da família, tirante minha mãe, que, por ser mais ocupada com as mexidas da casa do que com as do curral, não entrava no rol daqueles que podiam ou não embravecer com o animal, cada vez mais cheio de tretas e velhacarias.
Da lida com o gado, a Amarelinha entendia como nenhum outro muar ou cavalo da fazenda. Boa de rédea, só faltava adivinhar os comandos do ocupante da sela, que nem precisava puxar-lhe com mais força o freio, como costumava acontecer a outros “queixos-duros” de sua raça. Além desses serviços domésticos, de beira de porta, com gado manso e costumeiro, ela, ainda, fora, algumas vezes, segundo relatos fidedignos de peão-capataz da nossa mais alta consideração, acompanhando inúmeras boiadas que atravessaram o Rio Grande, para adentrar, em longas léguas, território paulista. Isso, com mais de mês de marcha cerrada, nem sempre de dorso ao vento, liberada das selas e das esporas pontiagudas de peões, quase sempre desacostumados aos bons-modos, nos tratos domésticos. Dia, sim, dia, não, carregava um peão diferente nas costas, para o resfôlego de outros animais da tropa boiadeira. Na Planura, a nado, as águas bastantes e pesadas, lhe assistiram o focinho de fora, as narinas a disputarem o ar precioso com as centenas de bois cansados.
Deixou histórias de contentamentos e desagrados. Raivas passageiras de menino, que, freqüentemente, tinha que trazer os “animais” ao curral, custasse o que custasse, e, ela, velhaca e maliciosa, tudo fazendo para desencaminhar os companheiros, além de lhes ensinar um bom bocado de artimanhas e safadezas, para não seguirem pelo trilho certo. Nem lágrimas a comoviam, já que no voltar à casa sem a tropa, ralhados do pai não se fariam esperar. A mulinha só mudava de idéia, depois que um dos animais, menos experiente, farejava o que menino sofria, e tomava o rumo da casa. Gregária e bem irmanada ao grupo, ela não iria ficar, por ali, sozinha, no morro daquele pé de serra, trocando de lado, a olhar o resto da tropa seguindo na direção desejada. As pedras da Serra Feia podem bem testemunhar aqueles tristes corre-corres e xingamentos, que, quase sempre, precediam um “buscar de animá”, quando se tinha no comando uma tão safada criatura.
Raiva, de verdade, ela fez ao meu avô, que nela foi a passeio, pelos lados dos Caixetas. Embora de confiança e mansa de montaria, a Amarelinha exigia cuidados em não se deixar porteiras com tramelas facilitadas, nem colchetes bambos, que ela os abria nos dentes, e deixava o cavaleiro a pé, sem saber do seu paradeiro. Quando, de volta, em animal emprestado, o meu avô chegou à casa de meus pais, lá encontrou a mulinha, de velha madrugada, o olhar dissimulado e malicioso, em meio à tropa, a mastigar seu capim costumeiro, o rabo de abanar mosquitos, traduzindo despreocupação.
Já, de índole boa, com a perda das cócegas e ímpetos da juventude, ela, até, se deixava pegar no pasto, e nela montar em pelo, servindo-se de seu joelho como degrau, coisa rara para um muar, quase sempre de temperamento instável. Mansa, boa de sela, sabia chegar do lado certo nas porteiras, não refugava com pouco espalhafato, não dava coice na hora de acomodar-lhe a sela, conhecia os donos, e se prestava para o que desse e viesse, na lida do diário.
De certa feita, para mais detalhamento de rodeios, eu-menino, de pouca idade e experiência, que acompanhava meu pai em suas idas e vindas pelos caminhos dos longes da Boa Vista, Serra Feia e Fulminante, fui levado a pegar, sozinho, o rumo de volta à casa. Por desconhecer aquelas estradas e bifurcações de caminhos, meu pai achou por bem me instruir: “bambeia as rédeas e deixa que a mula conhece os caminhos”. E, assim, de desvãos e desvios acabei chegando, sem nenhuma hesitação da mulinha, que me carregava bem macia. Nenhuma treta e tropeços, já que o voltar sempre foi mais facilitado, para qualquer animal de terreiro.
Mas, os tempos se passaram, e a Amarelinha como que se encantou, para viver só na imaginação, e deixar seus espaços de boas lembranças aos que dela se serviram. Como quis meu pai, nas condições de venda, nunca mais se viu, por aquelas terras, cordas a tolherem-lhe suas fortes vontades, embora se soubesse que suas energias em breve passariam a outros semoventes, nem, pelo tanto, conhecidos e estimados.

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