quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Contos contados de Minas (48)

Zé Nosso 

No dia do velório de meu pai, Zé Nosso bebeu umas pingas e chorou o quanto quis, guiado só pelo que o coração ditava, como ninguém, ali presente, podia duvidar, cortando o costumeiro silêncio das despedidas definitivas, em reverências ao mistério da morte. Ninguém foi dizer-lhe que respeitasse o momento, que contivesse os soluços, pois todos da nossa família sabiam que aquele tipo de proceder nada mais era do que pura sinceridade.  Ele gostava de nós, e nós, muito mais dele, como talvez nem ele próprio soubesse.
Zé Ritinha ou Zé da Ritinha eram alcunhas que lhe escondiam o nome. Que Ritinha? Essa era conhecida de todos do lugar, mas do marido não se sabia e nem em saber se interessava. O importante era que dela meninos nasceram, fato de que ninguém podia duvidar. Quem pode garantir paternidade? Nem exames do DNA acerta em plenitude, por esses tempos de avanços dos estudos genéticos! E, depois, a gente deve carregar, mesmo, é o nome e as lembranças da mãe por toda a vida. Do pai, nem tanto. Foi assim que Deus quis, e pronto! Nem, por isso, filhos sem pai declarado deixam de ser boas pessoas, dignas do céu como qualquer vivente, mal ou bem nascido. Certidão com todos os campos do formulário bem preenchidos, as terras e as mais posses bem divididas, com nomes de famílias em tabuletas nas porteiras, só mesmo para alguns privilegiados da sorte, não se sabe se merecida ou não. No mais das vezes, esses tais só se vangloriavam das aparências, que trabalhar, no duro, somente os mal nascidos, que ainda pegavam na orelha da sota, do valete ou do pesado cabo de enxada, para remexerem a terra, colherem o feijão, e a farinha que davam o sustento aos patrões, e engrossavam as pernas das futuras mães, para criarem ninhadas de filhos, como ditava a precisão e Santa Madre Igreja.
Zé Nosso não era só nosso. Na verdade, ele já pertencera a muita gente, sobretudo ao Avelino Cristiano, com quem havia morado desde rapazote. Para os outros da extensa família patriarcal, Zé Nosso era Zé do Avelino, mais do que Zé da Ritinha. Não sei bem por quê, um dia foi morar com meu pai, e por lá ficou uns tempos, como se costuma dizer, quando não há como fixar data certa. E, ademais, nem carece de precisar o tempo, que não foi muito, mas só o suficiente para ganhar, dos lá de casa, a alcunha carinhosa de Zé Nosso, contra a qual, parece, nunca se rebelou. Dele, todos gostávamos, sobretudo a irmã mais nova que ainda gosta tanto dele, que costuma visitá-lo de vez em quando, lá na casa do Avelino Cristiano, já, há muito, desabitada. Assim, o destino não o fizera só nosso, mas de todos, que a todos sempre serviu, com toda a humildade e mais amor.
Nunca criou família, mas, no tempo em que morou com meu pai, andou arrastando asas para a banda de uma vizinha, que não deu em nada. Continuou, como ainda continua, em sua madurez, sozinho, morando só com Deus, e algum anjo da guarda em trânsito de vigiar cada vez mais gente, nascendo.
Pelos dias das idas à casa da Rosalvinha, filha de Dona Sinhazinha, parteira que trouxe à luz muitos rebentos, meninos e meninas, da redondeza, foi que aconteceu, comigo, a visagem das três figuras de branco, a vagarem, cabisbaixas, em noite de breu e prenúncios de muita chuva, lá pelos altos da Bocaina, lugar mal assombrado. O Zé Nosso é que matou a charada, repercutindo o meu relato, e garantia de que se tratava, com toda a certeza,, de três mulheres de branco, em carne e osso, a ladearem o meu caminho, assustando o cavalo baio em que vinha montado. A se acreditar em Seu Jacinto Bina, negro de grande respeito, com ares de Preto Velho, assombração só aparece em lugares marcados, como aquele, por certa religiosidade, de se rezar terço, em novenas, outeiros, e espigões de muita judiação de cativos.
O certo é que nosso agregado espalhou a notícia, e lá, na casa da namorada, amarrou as embiras do fato, ao se cientificar do ocorrido. Eu é que havia passado por alma de outros mundos, aos olhos das três pobres moças, filhas do Zé Quartelli, recém saídas de um mutirão de fiandeiras. O foco da lanterna, de luz já quase se apagando, não tinha nada do além. Era real, que até ali, as pilhas tinham minguado a energia.
Devo isso ao Zé Nosso, que não me deixou passar por mentiroso, sobretudo diante daquele negro supersticioso, compadre de meus pais, Seu Jacinto Bina, a quem tive a honra de levar às portas do paraíso, segurando-lhe a cabeça. para o último suspiro, naquelas terras de raios e ventanias, coerentemente, apelidadas de Fulminante. Que Deus o tenha e o guarde, nas roupas brancas, como era de sua preferência, e em alvas nuvens, como mereceu!
Para não encompridar a conversa, devo dizer que, naquela noite de fortes chuvas e de rios cheios, minha mãe colocou o Zé Nosso para vigiar as águas do Santo Antônio, lá na escuridão do mato, lugar afastado da casa, bem fundo de dar medo, até com o risco de alguma onça o querer jantar, no caso de eu arriscar a encurtar caminho de volta para casa. O Zé ali permaneceu, ao rumorejar das águas, até que o rio desencorpasse, e já não fornecesse mais perigo para cavaleiro inexperiente, que nem eu.
Os tempos passaram. Ainda, agora, a irmã caçula costuma fazer uma visita ao Zé Nosso, mais nosso do que da Ritinha sua mãe, ou do Avelino Cristiano, ou de todos do lugar, onde andávamos a cavalo e, agora, em carros velozes . Lá, deve estar ele, sóbrio, porque já não precisa mais enfrentar olhares públicos de velório, para chorar os mais sinceros sentimentos de amor ao defunto. Que ela vá prestar-lhe assistências, e que não o deixe morrer à míngua, sozinho, no escuro do esquecimento!

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