sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Contos contados de Minas (47)

A pescaria 

É certo que histórias de pescador ou de caçador nem sempre são mentirosas. Podem, até, ser exageradas para engrandecerem os feitos dos atores. Mas, falaciosas, jamais, que pescadores e caçadores, do muito que carregam nos embornais, o maior pedaço é reservado a verdade. O resto fica para as tralhas de caça ou de pesca, e um pouco se reserva à matalotagem, porque nem sempre se caça e se pesca para encher barriga de contador de causo ou de quem aprecia jogar conversa fora. O tempo para a espera da lebre ou do peixe se reserva, também, para se articular as explicações do que se caçou ou se pescou, muito ou nada, ou só criadas na imaginação, o que tem garantida a verossimilhança.
Em geral, os lugares freqüentados por estes atores da chamada mentira, misturada com verdade, são sempre dificultosos. Beira de rios, lugares desertos de gente, descampados, capões de mato. Muito perigo, porque, além de caçadores e pescadores, perambulam por essas bandas, as sombras. Sozinhos, para não espantarem os animais, nem a imaginação os dispersar e dissipar.
Sair das garras de uma onça pintada ou vermelha, jaguatirica, gata do mato, faminta ou com crias recentes, faz crescer as imagens de quem escuta e, sobretudo, de quem conta. Pescar o peixe maior do mundo nunca teve a contrapartida para servir de contraditório. O prazer nem sempre vem da veracidade dos fatos. Uma mentira bem contada, como toda ficção, desperta mais a atenção do que um relatório de verdades administrativas. Ouvir um bom ou quase “mentiroso” pescador dá mais prazer, do que sabe proporcionar o amante da satisfatória “verdade”. Tudo resulta na mesma, que o absoluto, mesmo, neste mundo, só a Deus pertence. Estão aí, nas estantes, Simões Lopez Neto, Graciliano Ramos, e outros ficcionistas, para não me deixar mentir sozinho e me dar aval.
Assim dizendo, há dias em que o tempo não está para peixe, nem mesmo a água, por fria ou demais parada. Pode, até, não estar, mesmo, para nada, só para preguiça, de sombrinha na beira d´água, anzol banhando minhocas, e a engenhoca do cérebro molemolente, pensando na morte da bezerra. Melhor dizendo, matutando o passado, que não mais se endireita. Pau que nasce torto... Igual a cabo de guatambu, bom só quando tirado verde, sapecado em fogo de palha, dependurado em sedenho, no caibro do telhado, para se poder encabar enxada, foice, enxadão... Depois de arqueado, vira porrete para botar respeito nas vacas ciumentas de crias novas.
Não sou de muita experiência em pescaria. Caçadas, então, nem tiro dei em passarinho, quando menino, com espingarda de chumbinho miúdo. Andei jogando anzol “olho de mosquito”, iscado com umas minhoquinhas, dessas vermelhinhas, de beira de rego, para deleite de piabinhas, lambaris prateados, frequentadores de pocinhos de brejo, cabeça de bica, pequenos cursos d´água. Tudo isso, sem malícia, e muitas vontades. Mais tarde, aventurei-me em córregos mais avantajados, profundos e frios, à beira de mato e silêncios. Alí, já apareciam uns bagrezinhos bigodudos, umas sete-léguas compridas, como não deixa mentir o nome, umas tubaranas, piabonas, ou, talvez, piaparas. Depois, em beiras de açudes, pequenas lagoas, também, antes de serem povoados de alevinos diversos, de nomes esquisitos, produzidos em criatórios da cidade. Ali, podia-se, ainda, encontrar peixes mandis, piaus, que a própria natureza se encarregava de disseminar. Até passarinhos costumam povoar esses banhados com ovos de fêmeas de peixes mal digeridas. Existem tantas dessas coisas que nem Deus acredita!
Quando tive, por força do destino, que viajar para mais longe, fui instado, pela família da mulher, a conhecer cursos d´água de bem maiores tamanhos: Tietê, Feio, do Peixe, próximos de cidade grande. Mas confesso que, mesmo nessas ocasiões, não fui bem sucedido em minhas fantasias e tentativas de fisgar peixe grande, mais briguento, e que desse, pelo menos, para tapar o buraco do dente, como se diz em beira de balcão de botequim, com certo exagero, no deguste da pinguinha, para sacudir o marasmo dos braços e do sedentarismo.
Mas um dia..., em que o Rio do Peixe não estava para peixe, algo aconteceu. Meus companheiros, experientes e conhecedores do lugar e de barrancos, andavam daqui prali, sem conseguirem um puxãozinho que fosse. Era só assistir anzol e pedaços de minhocuçu a tomarem banho, entrando n´água, e saindo cada vez mais enxaguados. Quanto a mim, nem mudava de lugar, acreditando, apertando os dedos no pensamento positivo, à espera de que ainda pudesse surpreender meus parceiros. Comentam que o gostoso da pescaria é a expectativa, e, não, a quantidade de peixe pescado a se levar para casa. Fosse assim, estes pegue-e-pagues urbanos seriam mais atraentes e mais povoados de gente graúda.
O certo foi que, em dado momento, cansei do banco à beira do barranco e resolvi mudar a isca e o anzol de lugar, para ver se não voltaria para casa sem, sequer, a sensação de um beliscão, desmotivado para uma prosa mais comprida, e, menos exagerada. Qual não foi minha surpresa, ao levantar uma corvina, que veio sem muito ondular a linha de náilon! Parecia morta. Ao retirá-la do anzol, não pude acreditar no que vi, nem deixar de chamar os companheiros para o que acontecera. O peixe tinha sido fisgado no ponto, onde deveria descomer o que nem comer apetecera, naquele dia mormacento. A explicação mais plausível para a inusitada façanha, foi a de que o infeliz fora surpreendido pela retirada brusca do anzol, justo no momento em que passava rebolando desinteresse, por sobre a fisga do anzol, que o atingiu, no ponto crucial que nem ele poderia imaginar.
História de pescador? Nem tanto. Voltar para casa, sem peixe e sem o que contar, é que não poderia acontecer, mesmo que fosse só o tanto de não deixar fama ou conversa esfriarem.

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