segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Contos contados de Minas (46)

O Noturno  

Questão de vocabulário, o soar-me estranho, para nunca mais esquecer, dos sons lúgubres e soturnos dos aviões que, à noite, passavam por sobre nossa casa e cabeças perdidas em meio à solidão dos altos da Fulminante. Diziam as pessoas mais velhas, entre elas meu pai, de pouquíssimas letras, tratar-se do “noturno”.
Quando, à noite, o sono despregava-se de mim, ouvia, na escuridão do quarto, aquele som fanho que vinha vindo do longe. Chegava, cada vez mais presente sobre nossas consciências, e fazia-me lembrar do prognóstico de minha mãe, de que barulhos daqueles, à noite, prenunciavam transporte de algum defunto ou moribundo. Só a morte, ou a iminência dela, justificaria viagens de tamanha urgência e perigo, no vazio do escuro dos espaços imensos.
Quis a sina que eu viesse a utilizar-me daquele transporte por diversas vezes e por largos espaços de tempo. Estar ali, a doze mil metros de altura, à noite, varando continentes, embrulhado em cobertores, os olhos arregalados, a pensar que, lá embaixo, crianças estariam acordadas, escutando aquele som contínuo de motores, faz-me, ainda, mais pensativo do quanto se é pequeno e frágil na imensidão dos ares.
Santo Exupéry, em Terra dos Homens, retratou, de dentro de um desses aparelhos mais pesados do que o ar, essa nossa insignificância. Mesmo que diminua nossas distâncias, ela nos domina e nos deixa tão reduzidos às incertezas da existência sobre esse planeta. Quando se pensa, daquelas alturas, que cá embaixo pessoas estejam, também, pensando em nós, nos ouvindo e cismando, um existencial mistério se estabelece.
O escritor francês, já, naqueles tempos, em que raros aviões contemplavam nossas paisagens terrenas, se perguntava diante do infinito: “Tenho sempre, diante dos olhos, a imagem de minha primeira noite de voo, na Argentina, uma noite escura em que sozinhas cintilavam, como estrelas, as raras luzes esparsas na planície. Cada uma assinalava, naquele oceano de trevas, o milagre da consciência. »
Por falar em mundos e insignificâncias, ainda um pequeno trecho do conto “Blanc et Bleu” do livro “Misti” de Guy de Maupassant: “... eu pensava nesta pobre e pequena humanidade, neste pó de vida, tão ínfima e atormentada, que fervilhava sobre este grão de areia perdido na poeira dos mundos, neste miserável rebanho de homens, dizimado pelas doenças, esmagado pelas avalanches, sacudido e amedrontado pelos terremotos, nestes pobres seres invisíveis a um quilômetro, e tão loucos, tão vaidosos, tão briguentos, que se entrematam, tendo apenas alguns dias para viver. Eu comparava as pequenas mariposas que vivem algumas horas aos animais que vivem alguns anos, aos universos que vivem alguns séculos. O que pensar de tudo isso?”
Uma dessas consciências, de que há bilhões espalhadas pelo mundo, pode bem ter sido a de um menino medroso, à espera de que o sono chegasse e levasse consigo a lamparina de querosene, para economia de combustível,  deixando um rastro de fuligem pelo quarto, a tingir de escuro, narinas e pulmões ainda em começos de vida.
Os “noturnos” continuarão a passar sobre nossas cabeças, cada vez mais numerosos, cada vez mais altos, cada vez menos barulhentos, sem deixarem de ser cada vez mais misteriosos e temíveis. Alcançaremos os planetas mais próximos, as estrelas mais longínquas. Nem por isso,  deixaremos de avançar na conquista de nossas cada dia mais frágeis compreensões de nós mesmos e de nossos semelhantes, tão díspares vizinhos.
Lá de bem distante, certamente, nossos representantes se lembrarão de se comparar com os que ficaram aqui, também distantes, Não deverão se julgar possuídos de super poderes, porque a humildade e a consciência de sua pequenez serão sempre o norte que tanto procuram.

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