Cachorros de Roça, guardiães dos campos (2)
Houve dois outros nomes estranhos para cachorro, naqueles tempos em que caninos levavam vida compatível com sua natureza, sem laços na cabeça, sapatilhas e penteados de petchopes. Nome de gente comum, nome conhecido, de tirano. Lopes, isso é, por acaso, nome de cachorro , ainda mais para donos que nunca ouviram falar em Guerra do Paraguai, de triste lembrança para os de lá , como para os de cá do Paranazão? Mas o certo é que, no inconsciente coletivo, ficou esta ojeriza para com um governante de país que os livros de história, nos Estados vencedores da triste guerra, chamam de ditador sanguinário . Herói lá , tirano cá, não vem ao caso. O Lopes, de que ora se trata, morreu de um abraço . Abraço de tamanduá, no sentido próprio da expressão, que lhe enfiou nas costas, sem dó, unhas de derrubar os mais empedernidos cupinzeiros.
Este, parece, foi o mais próximo da garotada e, nem pelo tanto, menos esperto e simpático. “Vem cá, tiozinho”! Tio, ou mais carinhosamente, tio-tio, era como se costumava chamar cachorro nas “roças” mineiras. De Tio para Tiozinho foi questão de tamanho do animal, afeição ou carinho.
Tiozinho caracterizou-se como um inquestionável vira-lata, sem grandes brios, decência, obediência e parentesco com alguma outra qualquer raça canina que figure em cartaz de consultório veterinário, ladeando diplomas dependurados na parede . Para um cachorro sem muita personalidade, ele tinha a qualidade dos cães fiéis para o que desse e viesse. Gostava de fazer o gosto da meninada, que dele fazia gato e sapato, rodopiado em um saco de pano qualquer, as mandíbulas bem seguras, para não virar pedra de bodoque. Ganhou a grande estima e deixou largas e longes lembranças.
Mas, aconteceu de aprender a “pegar” carneiro , os mesmos que forneciam a matéria prima que, misturada ao algodão, catado, descaroçado, cardado, fiado, dobado e enovelado, dariam as “colchas de lã”, com as quais minha mãe procurava compor o enxoval das quatro filhas, e dos seis filhos, quando resolvessem a se casar. Doze colchas para cada uma das quatro filhas e uma única para cada um dos seis filhos, como constituição dos dotes. Digressões que só a sociedade de consumo ajuda a explicar, e só tem a ver com cachorro, quando um desses aprende a correr atrás de carneiro, para os matar por puro instinto de predador.
No início, aprendeu a provocar os bichos , como que brincando, mas, depois, foi alimentando idéias de os abocanhar e os deixar feridos, meio mortos. No início, os abandonava aos urubus, mais tarde é que passou a tirar um naco de carne para saborear o gosto. Vai daí, o Tiozinho não se emendou, apesar dos muitos e sérios castigos. Não houve remédio amargo que o fizesse esquecer dos malefícios, senão sacrificá-lo para a tristeza dos meninos que o tinham como parceiro nas brincadeiras de curral , no final da tarde , quando o sol, de olhares avermelhados, já vinha se preparando para o anoitecer.
Um comentário:
Joaquim, meu amigo, sua mão está cada dia mais afiada na narrativa. Lembra daquele dia que compramos livros velhos. Já li um pouco e anotei alguma coisa que vai abaixo. Tem passagens muito bonitas como essas duas:
A RUA DAS ILUSÕES PERDIDAS, de John Steinback
"O ar está impregnado com o cheiro forte de iodo das algas, o cheiro de limo dos corpos calcários, o cheiro multiforme de incontáveis espécies, o cheiro de esperma e ovas. Nos rochedos expostos, as estrelas-do-mar emitem semem e ovas entre os seus raios. Os cheiroas de vida e exuberância, de morte e digestão, de deterioração e nascimento, se espalham por toda parte." (Capitulo VI)
"A caldeira parecia uma locomotiva antiquada, sem as rodas. Tinha uma porta grande na frente e uma porta baixa de fogo. Pouco a pouco, foi se tornando avermelhada com a ferrugem e hibiscos cresceral ao redor. Mirtas em flor subiram pelos lados e o perfume de anins envolveu-a. Depois, alguém jogou ali uma raiz de trobeteira e a árvore cresceu rapidamente., as flores brancas pendendo sobre a porta da caldeira. à noite, as flores exalavam um perfume de amor e excitamento, incrivelmente suave e emocionante." (Capítulo XVIII)
Postar um comentário