segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Contos Contados de Minas (7)

Cachorros de Roça, guardiães dos campos (2)

Houve dois outros nomes estranhos para cachorro, naqueles tempos em que caninos levavam vida compatível com sua natureza, sem laços na cabeça, sapatilhas e penteados de petchopes. Nome de gente comum, nome conhecido, de tirano. Lopes, isso é, por acaso, nome de cachorro, ainda mais para donos que nunca ouviram falar em Guerra do Paraguai, de triste lembrança para os de , como para os de do Paranazão? Mas o certo é que, no inconsciente coletivo, ficou esta ojeriza para com um governante de país que os livros de história, nos Estados vencedores da triste guerra, chamam de ditador sanguinário. Herói , tirano cá, não vem ao caso. O Lopes, de que ora se trata, morreu de um abraço. Abraço de tamanduá, no sentido próprio da expressão, que lhe enfiou nas costas, sem dó, unhas de derrubar os mais empedernidos cupinzeiros.
Também, pudera! O coitado, de pura fidelidade, fora obedecer ordens de menino sem juízo, para enfrentar bicho do mato que não faz mal a ninguém, a não ser quando alguém tenciona bulir no seu sossegado mister! Morreu lazarento, em um canto de parede, tentando lamber suas feridas, como último recurso de sobrevivência. Cachorro de roça, ou se cura sozinho ou, simplesmente, morre, para deixar lugar a outros de mais sorte ou de menos brio de obediência, como, por exemplo, um outro capitão dos campos, o Tiozinho, com todas as virtudes inerentes à sua raça, ou melhor, falta de raça, como se verá.
Este, parece, foi o mais próximo da garotada e, nem pelo tanto, menos esperto e simpático. “Vem cá, tiozinho”! Tio, ou mais carinhosamente, tio-tio, era como se costumava chamar cachorro nas “roças” mineiras. De Tio para Tiozinho foi questão de tamanho do animal, afeição ou carinho.
Tiozinho caracterizou-se como um inquestionável vira-lata, sem grandes brios, decência, obediência e parentesco com alguma outra qualquer raça canina que figure em cartaz de consultório veterinário, ladeando diplomas dependurados na parede. Para um cachorro sem muita personalidade, ele tinha a qualidade dos cães fiéis para o que desse e viesse.  Gostava de fazer o gosto da meninada, que dele fazia gato e sapato, rodopiado em um saco de pano qualquer, as mandíbulas bem seguras, para não virar pedra de bodoque. Ganhou a grande estima e deixou largas e longes lembranças.
Mas, aconteceu de aprender a “pegar” carneiro, os mesmos que forneciam a matéria prima que, misturada ao algodão, catado, descaroçado, cardado, fiado, dobado e enovelado, dariam as “colchas de lã”, com as quais minha mãe procurava compor o enxoval das quatro filhas, e dos seis filhos, quando resolvessem a se casar. Doze colchas para cada uma das quatro filhas e uma única para cada um dos seis filhos, como constituição dos dotes. Digressões que só a sociedade de consumo ajuda a explicar, e só tem a ver com cachorro, quando um desses aprende a correr atrás de carneiro, para os matar por puro instinto de predador.
No início, aprendeu a provocar os bichos, como que brincando, mas, depois, foi alimentando idéias de os abocanhar e os deixar feridos, meio mortos. No início, os abandonava aos urubus, mais tarde é que passou a tirar um naco de carne para saborear o gosto. Vai daí, o Tiozinho não se emendou, apesar dos muitos e sérios castigos. Não houve remédio amargo que o fizesse esquecer dos malefícios, senão sacrificá-lo para a tristeza dos meninos que o tinham como parceiro nas brincadeiras de curral, no final da tarde, quando o sol, de olhares avermelhados, já vinha se preparando para o anoitecer.

Um comentário:

tocadaspacas disse...

Joaquim, meu amigo, sua mão está cada dia mais afiada na narrativa. Lembra daquele dia que compramos livros velhos. Já li um pouco e anotei alguma coisa que vai abaixo. Tem passagens muito bonitas como essas duas:

A RUA DAS ILUSÕES PERDIDAS, de John Steinback

"O ar está impregnado com o cheiro forte de iodo das algas, o cheiro de limo dos corpos calcários, o cheiro multiforme de incontáveis espécies, o cheiro de esperma e ovas. Nos rochedos expostos, as estrelas-do-mar emitem semem e ovas entre os seus raios. Os cheiroas de vida e exuberância, de morte e digestão, de deterioração e nascimento, se espalham por toda parte." (Capitulo VI)


"A caldeira parecia uma locomotiva antiquada, sem as rodas. Tinha uma porta grande na frente e uma porta baixa de fogo. Pouco a pouco, foi se tornando avermelhada com a ferrugem e hibiscos cresceral ao redor. Mirtas em flor subiram pelos lados e o perfume de anins envolveu-a. Depois, alguém jogou ali uma raiz de trobeteira e a árvore cresceu rapidamente., as flores brancas pendendo sobre a porta da caldeira. à noite, as flores exalavam um perfume de amor e excitamento, incrivelmente suave e emocionante." (Capítulo XVIII)