segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Contos Contados de Minas (5)

Lições de piano

(Depois do concerto de piano, com participação da minha sobrinha Elisa Fallieri do Nascimento Caixeta, no Auditório do SESC,,902 Sul, Brasília- DF, em 4/12/10. Relembrando, também, antigos momentos com o Dr. Marcos Lúcio,Rocha,  em Mendes-RJ.e Uberada-MG.)


            A Bíblia diz que, ao se dar esmola, que a mão esquerda não saiba o que faz a direita. Tirante a imagem para o desprendimento e a sinceridade do gesto da doação, poder-se-ia dizer que o desconhecimento de um órgão pelo outro não se revela possível. Como um olho pode desconhecer o que faz o outro, um pé o que o outro faz? Como acontece em qualquer texto, ou tecido, qualquer elemento está intimamente ligado aos demais. Assim, as orelhas, os pulmões, os rins, os fios de cabelo, os dedos das mãos, todos são desiguais e, nem por isso, menos unidos, no trabalho que o corpo reclama. Em se tratando de música, então, cada vibração de notas repercute em perfeita sintonia com todas as células do todo.musical. Se Deus criou os seres em harmonia, como tudo na natureza, uníssonos estarão mãos, olhos, dedos, ou quaisquer partes do corpo humano, e não podem desconhecer a participação de outras, na execução da grande sinfonia que traduzem os sentidos humanos. Mesmo com funções diferentes na orquestração das partituras musicais, os organismos encontram na solidariedade a grande sabedoria divina.
Quando me ocorre assistir a um recital de piano, fico observando o quão diferentemente age cada célula do artista, para produzir efeitos tão agradáveis, nascidos da magia de cérebros privilegiados, como os do compositor e os do executor da obra de arte em apreço. Há momentos em que os cabelos parecem dialogar com os olhos na consecução do todo harmônico, e me convenço de que o piano ocupa lugar de destaque entre os inúmeros outros instrumentos seus pares, pelas mãos, dedos, pés, pulmões e a própria alma do pianista.
Todavia, quanto trabalho e disciplina foram necessários para um aproximar-se da perfeição, desde os primeiros momentos do aprendizado aos últimos aplausos ao virtuose da beleza da arte! Quanta repetição, até que músculos e cérebro se identifiquem aos acordes harmônicos da sensibilidade artística!
            Isso me faz, então, lembrar de quando, recém chegada da zona rural, minha família foi viver na cidade, levada por meu pai, um quase analfabeto, que dizia, entretanto, não querer para os filhos o que não pôde usufruir, por imposição do destino: a falta de instrução escolar. A casa onde passamos a morar tinha como vizinhos um casal, com dois filhos, ajudantes do pai na loja de louças, duas filhas, já moças, além de um casal de menores, dos quais um foi meu colega em casa de formação religiosa, o que nos aproximou a quase irmãos consangüíneos.
            Um piano fazia parte dos móveis daquela casa vizinha e, a nosso entendimento, misteriosa. Como vim a saber, anos depois, o instrumento formara mais de uma geração de pianistas, entre eles meu colega de seminário, que chegou a ser o organista principal das missas solenes e prolongadas dos domingos e dias santificados, com o canto gregoriano ainda em pleno vigor litúrgico. Entretanto, à época em que fomos vizinhos, o que nos sobrava de lembranças daquele instrumento caudaloso era a capacidade de produzir sons descompassados, pelo dedilhar de alunos neófitos, nos mais diversos níveis de aprendizado, nas aulas que uma das moças ministrava. Ultrapassavam os vãos das janelas da sala e vinham ferir nossos ouvidos, minimamente apreciadores de tão nobre instrumento.
Ao longo do dia, aquelas notas desconexas e desprovidas de sinergia melódica, que pudesse redimi-las, extraídas das mãos ainda inábeis dos alunos, imprimiam uma cansativa monotonia ao nosso dia-a-dia.
Como desconhecêssemos o contexto da verdadeira música erudita e do instrumento que lhe deu tão preciosas relíquias, aqueles sons não deixavam de nos despertar sinais de irritação. Meu pai, acostumado ao chiado grave-agudo do carro de bois, ao mugir das vacas, ao canto do galo e dos passarinhos, soltos pelos verdes dos arvoredos do silêncio campesino, ao vir à cidade, em visita à família, sempre estranhava aqueles recitais inoportunos. Achava “enjoados” os exercícios monocórdios e sem cadência. Nunca pôde mudar o conceito que fazia do piano, por nunca ter tido a oportunidade de ir a um concerto (agora, sim, pensado com “C”) em que o sublime instrumento tivesse podido se redimir da indevida má fama. Em solo, ou em acompanhamentos a mais outros instrumentos e vozes, orquestrados na mais singela e harmônica beleza, o piano o teria feito mudar de idéia. Uma peça de Chopin bem executada o teria levado a esquecer momentos de insatisfação com aqueles sons desagradáveis.
Não posso me furtar a tão longínquas imagens, quando me acontece ouvir uma peça clássica, seja em disco ou ao vivo, na qual os acordes do piano entram-me pela alma a dentro, na mais absoluta abstração, que só a música sabe proporcionar. Hoje, incompreensivelmente, meu vizinho e colega parece ter abandonado os teclados pelos bisturis. Mas minhas velhas lembranças inspiram-me, ainda, textos como esses que dedico aos inúmeros prazeres que a Música sempre proporciona, e aos aprendizes que a ela se orientam:
             
Divina música
sonho,
a que céus mi levas
assim tão pluma?
Vôo de pássaros,
furam água e ar,
ma e espuma?

Música, apontas-mi,
assim, tão cil,
os encantos,
e mi viajas numa clave
de sol,
e z-mi ir
para de mim?
Música, até onde és sentida,
si o infinito
é mesmo assim infindo,
e tem sede de si
lêncio e sons
e/ternos?

Música, alivia
meus momentos
de pensador.
Quem sofre não tem lá,
nem si, nem
de ré-amar,
só alegrias de si dó-ar.

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