quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Contos Contados de Minas (6)

Cachorros de Roça, guardiães dos campos (1)

Nome de cachorro não aparece por acaso. Pode estar, até, no inconsciente coletivo, para motivos de vingança ou bonomia. Campeão, por exemplo, deveria ser apelido de cachorro que, na disputa de qualquer modalidade de competição, se destacasse em relação aos demais competidores. Esse não foi o caso. Mas, em alguma coisa se destacou o exemplar canino, mesmo que somente em como acabou sobrevivendo a uma boa dose de tártaro, veneno usado para matar ratos e outros animais de má reputação e danação no estrago dos mantimentos. A escapada da morte o notabilizou e o fez viver ainda por mais alguns anos, embora sem a mesma disposição de outros tempos, em que da vida ainda não era, assim, tão campeoníssimo. E foi como o fato se deu.
Ele andava fraco, cambaleante, sem vontade alguma de comer. Parece que se empesteara com alguma comida mal encontrada por aqueles fundos, de topografia desconcertada, onde até urubu deixava despercebido algum animal morto ou moribundo. Isso era o que se dizia do lugar. Vezes, comia grama verde para picar-lhe a garganta e provocar o vômito, ou a barriga esvaziar. Mas, ali, não, o mais certo é que a morte seria seu destino. Minha mãe quis aplicar-lhe o golpe da eutanásia, diante daquele sofrimento de fantasma de bicho pestilento. Aprontou-lhe um almoço mais saboroso, e o recheou de tártaro, do qual, por milagre, o Campeão sairia vivo, no pensar dela. O cão, com muito custo comeu aquela arapuca de misericórdia.
Momentos depois foi aquele disparate de agonia. O bicho endoideceu e botava para fora todo o mal que se lhe roia o estômago e as tripas. Minha mãe achou que poderia ter economizado um pouco no suplício. O bicho correu, se escondeu, quem sabe, de vergonha da lambuzança, uivou e não morreu. Aos poucos foi se soerguendo, ajuntando forças e encontrando o ânimo e o apetite de outros tempos. Dias depois, o cachorro voltou a ser o Campeão de outros combates. Campeão da vida, que a morte não venceu.
Dele, conta-se, também, que, tendo meu pai perdido um forro de arreio e,  dando falta dele depois de boa distância de jornada, rebuscou caminho e encontrou o Campeão deitado ao lado do objeto, protegendo-o até que um conhecido viesse recobrá-lo.
De outra feita, no São João da Serra Negra, meu pai amarrara a Rainha, mula pelo de rato, boa de porte e marchadeira, na árvore de um quintal do arruado. O cachorro, que o acompanhara na viagem, deitou-se ao lado da montaria, como se somente descansasse. Na hora de ganhar a estrada de volta, meu pai, disse a um amigo. “Vai e faz de conta que vai pegar a mula.” Quando esse ameaçou alcançar as rédeas dos arreios, o Campeão se levantou e mostrou-lhe os dentes de poucos amigos, como que dizendo “aqui, não, seu ladrão”. 
Morreu de velho, como costuma morrer a segurança. O tempo o levou como leva qualquer vivente de idade avançada: faliram-lhe os órgãos vitais, entre eles os responsáveis pela boa digestão.

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