sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contos contados

Sereno 

Madri, longes de março de 1973, estava em viagens pelos países da Europa, aqueles que nos eram permitido visitar, naqueles anos de ditaduras e . Por aqui, a “redentora”, que não se sabia redimindo o quê, e, por lá, o empalidecer de regimes franquista e salazarista, de longa data e triste memória. Bolsista do governo francês, havia comprado, antes de deixar o Brasil, um ”europasse” que me dava a oportunidade de viajar de trem, pelo período de um mês, em primeira classe, por todos os 13 países da Europa Ocidental. Aqueles da Europa do Leste estavam ainda trancados com seus mistérios, para os visitantes do mundo capitalista.
 Comecei, então, minhas andanças no início do mês de março, pelos países do norte europeu: Luxemburgo, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Noruega. Contava também visitar a Holanda e a Bélgica que, por questão de estratégia e tempo, ficaram para outra ocasião. Tinha data marcada para receber o dinheiro da bolsa em Paris e, ali, compareci, como não podia deixar de ser, após já ter gasto mais de semana em visitas às cidades de Frankfurt, Bonn, Hanôver, Copenhague, Oslo e Estocolmo.
Com o dinheiro da bolsa e pernoite no meu quarto no apartamento dos Lajous, renovei o frugal farnel de viagem, retomei o compartimento de primeira classe no trem para Lisboa, entrando por Vilar Formoso. Umas vistas d´olhos em Oeiras, Lisboa, Porto, um polvo frito, regado a vinho branco, em Vigo, uma caminhada pelas ruelas estreitas nos arredores da catedral de Santiago de Compostela, me permitiram um primeiro contato com Portugal e Galícia. Depois, Madri, de onde pude visitar Toledo e fazer uma visita a El Greco, embora não tenha conseguido ver as famosas Touradas, em que somente “niños de pecho” estavam dispensados de assistirem sem pagar entrada.
Mas tais detalhes ficam para outras investidas. Agora, agora, volto a Madri e ao Hostal onde acabei me hospedando, perto do centro da capital espanhola. Mochila às costas, casaco de frio, gorro, sapato leve apropriado para caminhadas, estava eu a procurar lugar para dormir, que satisfizesse meu reduzido orçamento de estudante de minguada bolsa. Depois de muito procurar, encontrei, no último andar de um prédio mal cuidado, cujos únicos moradores eram um casal de velhos que penavam em se locomover de um lugar para o outro dentro da própria casa.
Mas eu não estava em condições de ser exigente. Recebi de bom grado quarto e cama desconfortáveis. Instalei-me, olhei para o relógio e achei que ainda podia dar umas voltas pelo centro da cidade. Fui me avistar, primeiro, com os proprietários para conhecer o regulamento da casa, principalmente quanto ao horário de regresso. Disse-lhes que deixava minha bagagem no quarto como garantia. Simpáticos, acederam às minhas vontades, mas avisaram que, caso chegasse depois das onze, teria que chamar o “sereno”, para abrir a porta de entrada do prédio. Dei pouco ouvidos aos detalhes e confiei na memória. Lá fui flanando pelas ruas a reparar bem no caminho, para não me perder na volta. Um bar, logo à frente, me chamou a atenção. Tinha ele todas as paredes tomadas por cartazes de touradas e cabeças de touros, desses pretos de chifres pontiagudos, de meter medo no olhar. Era ali, me informei, que se comprava as entradas para ver as touradas de Madri e, certamente, também as de Toledo. Deixei isso para o dia seguinte, quando contava partir para aquela cidade medieval não muito distante, ao sul de Madri.
Ao passar em frente a uma sala de cinema, resolvi assistir ao filme que ali se dava, Os Dálmatas, infantil, talvez de temática comum para aqueles tempos de franquismo e de rígidas censuras e agruras. Queria mais repousar um pouco. Descansei tanto que de saí poucos minutos antes das onze da noite. Rumei-me às pressas para o hostal, conforme o combinado.
Quando lá cheguei, a enorme porta, da época dos coches, estava fechada. A rua, não sei se pelo frio ou pelo toque de recolher, próprios daqueles tempos, estava deserta. E eu tinha apenas o “sereno”, que pensava ser uma pessoa, para me fazer entrar no prédio. Chamei em voz moderada para dentro do recinto fechado, onde imaginava devesse se alojar a tal personagem. Nada. Chamei, novamente, em voz um pouco mais alterada. Nada. Uma vez mais e nada. Saí à rua para melhor averiguar a situação e não enxerguei mais diante de mim do que o silêncio. Voltei à porta. Imprimi mais força na voz e nada se mexia naqueles soturnos e lúgubres lugares, cheios de medos. Comecei a imaginar uma noite a passar ao relento de uma rua deserta, no frio daquele mês de março, em Madri. , me veio à ideia de que talvez sereno não fosse uma pessoa, mas a enorme maçaneta de ferro, circular, pregada bem no centro daquele pórtico enorme, para com ela bater na madeira onde estava fixada. No sem mais o que fazer, peguei-me nela e bati com força relativa. Sempre a resposta do vazio e do frio. Nenhum sinal de vida. Bati com mais força. E o angustiante nada, novamente, se prenunciava meu companheiro de noite sofrida, ao relento de uma rua deserta.
Aí, tomado de uma força de desespero, apertei a mão naquele antigo instrumento de ferro de martelar, para aviso aos de dentro. O barulho foi tamanho a repercutir pelo silêncio das ruas, que luzes começaram a se acender nos prédios vizinhos. Temi pela minha segurança, diante daqueles ferozes espanhóis, moradores mal dormidos e incomodados no seu sossego.
       Qual não foi a minha surpresa, quando uma aba da portada se abriu e diante de mim surgiu a figura daquele velho senhor capengante, quase entrevado, que conhecia do apartamento do sexto andar, onde alugara quarto e cama. Ele não me pareceu de boa paz pelo tom de voz com que me falou, naquela língua lá dele, que eu mais conhecia pelas leituras e parentesco próximo com a minha, do que, propriamente, pelas poucas experiências de viagens. Bronqueava, fechava a cara e dizia que eu devia ter chamado o sereno, como havia me instruído, e olhe o que eu provocara, apontando janelas de luzes acesas. E, eu, acalorado pelo medo do frio e da noite, naquele deserto de almas, respondi, também, meio raivoso e sem bons modos, que não vira sereno algum por ali, ao que ele apontou com o dedo para detrás de minhas costas. Retornei-me e quem estava lá?  Sereno, o vigia noturno do quarteirão, com a cara amarfanhada de sono, tão deslavada, que a guardo, ainda hoje, nas lembranças de uma Madri lúgubre, bem longe de ser, assim, tão serena, como imaginava pudesse encontrar.

Um comentário:

Unknown disse...

Um encanto de narrstiva. Fez-me, sim, lembrar da España, mas ñ essa lúgubre. Vivi em Sevilla, uma cidade ensolarada e noite enluarada, da qual, sim, tenho muita saudade. Entretanto, uma vez em Madrid para um Congresso, deparei-me com situação muito semelhante à sua. Senti muito medo, embora ñ fizesse frio.
Parabéns pelo texto!!!!!