Sereno
Madri,
longes de março de 1973, estava em viagens pelos
países da Europa, aqueles que nos eram permitido
visitar, naqueles anos de ditaduras cá e lá . Por aqui, a “redentora”, que não
se sabia redimindo o quê, e, por lá, o empalidecer de regimes franquista e salazarista, de longa
data e triste memória .
Bolsista do governo
francês, havia comprado, antes de deixar o Brasil, um ”europasse” que
me dava a oportunidade
de viajar de trem ,
pelo período de um mês ,
em primeira
classe , por todos
os 13 países da Europa Ocidental . Aqueles da Europa do Leste estavam ainda
trancados com seus mistérios, para os visitantes do mundo capitalista.
Comecei, então, minhas andanças no início do mês
de março, pelos países do norte europeu:
Luxemburgo, Alemanha, Dinamarca, Suécia e Noruega. Contava também
visitar a Holanda e a Bélgica que, por questão de estratégia
e tempo, ficaram para outra ocasião. Tinha data marcada para receber o dinheiro da bolsa em Paris
e, ali, compareci, como não podia deixar de ser, após
já ter gasto mais de semana em visitas às
cidades de Frankfurt, Bonn, Hanôver, Copenhague, Oslo e Estocolmo.
Com
o dinheiro da bolsa e pernoite no meu quarto no apartamento
dos Lajous, renovei o frugal farnel de viagem, retomei o compartimento de
primeira classe no trem para Lisboa, entrando por
Vilar Formoso. Umas vistas d´olhos em Oeiras, Lisboa, Porto, um polvo frito,
regado a vinho branco, em Vigo, uma caminhada pelas ruelas estreitas nos
arredores da catedral de Santiago de Compostela, me permitiram um primeiro
contato com Portugal e Galícia. Depois, Madri, de onde
pude visitar Toledo e fazer uma visita a El Greco, embora
não tenha conseguido ver as famosas Touradas, em que
somente “niños de pecho” estavam dispensados de assistirem sem pagar entrada.
Ao
passar em frente
a uma sala de cinema, resolvi assistir ao filme que ali se dava, Os Dálmatas ,
infantil, talvez de temática comum para aqueles tempos de franquismo e de rígidas censuras e agruras. Queria
mais repousar um pouco .
Descansei tanto que
de lá saí já
poucos minutos
antes das onze da noite .
Rumei-me às pressas para
o hostal, conforme o combinado.
Aí,
tomado de uma força de desespero, apertei a mão
naquele antigo instrumento de ferro de martelar, para aviso aos de dentro . O barulho foi tamanho a repercutir pelo silêncio das
ruas, que luzes começaram a se acender nos prédios vizinhos . Temi pela
minha segurança, diante
daqueles ferozes espanhóis, moradores mal dormidos e incomodados no seu
sossego.
Qual não foi a minha
surpresa, quando uma aba da portada se
abriu e diante de mim
surgiu a figura daquele velho senhor capengante, quase
entrevado , que
já conhecia do apartamento
do sexto andar, onde
alugara quarto e cama . Ele
não me
pareceu de boa paz pelo
tom de voz
com que
me falou, naquela língua lá dele, que eu mais conhecia pelas leituras e parentesco
próximo com a minha, do que, propriamente, pelas poucas experiências de
viagens. Bronqueava, fechava a cara e dizia que eu devia ter chamado
o sereno, como havia me instruído, e olhe o que eu provocara, apontando janelas
de luzes acesas. E, eu, acalorado pelo medo do frio e da noite, naquele deserto
de almas, respondi, também, meio raivoso e sem bons modos, que
não vira
sereno algum por ali ,
ao que ele
apontou com o dedo
para detrás de minhas
costas . Retornei-me e quem estava lá? Sereno , o vigia
noturno do quarteirão , com a cara amarfanhada de
sono, tão deslavada, que a guardo, ainda
hoje, nas lembranças de uma Madri lúgubre, bem longe de ser, assim, tão serena,
como imaginava pudesse encontrar.
Um comentário:
Um encanto de narrstiva. Fez-me, sim, lembrar da España, mas ñ essa lúgubre. Vivi em Sevilla, uma cidade ensolarada e noite enluarada, da qual, sim, tenho muita saudade. Entretanto, uma vez em Madrid para um Congresso, deparei-me com situação muito semelhante à sua. Senti muito medo, embora ñ fizesse frio.
Parabéns pelo texto!!!!!
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